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Por Júlia Lyra, Manuella Valença e Nathalia Cruz

I. Preliminares. A entrada do túnel. Terra ignota por omissão. Em caminho para Pocotó. Primeiras impressões. Um sonho de esperança.

“Eu tava dormindo, quando acordei: - é a senhora que é Jarmelina? - sou, moço, o que foi que eu fiz? - sou oficial de justiça, saiu esse papel de despejo e a senhora só tem três dias para sair daqui”. O dia 11 de setembro deste ano amanheceu com sentimento de aflição para as famílias que vivem em cima do túnel Augusto Lucena, localizado em Boa Viagem, Zona Sul do Recife. Aliás, não somente para os poucos moradores intimados, assim como Jarmelina, mas para todas as cerca de 50 famílias que vivem na Comunidade Pocotó, cuja extensão envolve a parte acima do túnel e também o seu entorno. Sob a alegação de um iminente risco de desabamento, representantes da Prefeitura do Recife e policiais militares entregaram a ordem de desocupação e demolição das casas da comunidade, sem oferecer alternativas para os moradores.

Para os representantes do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto - MTST, que têm ajudado nas negociações com o poder municipal, não há nenhum tipo de documentação técnica que comprove o risco. Apesar de os próprios moradores terem consciência de que vivem em uma área irregular, o descaso governamental em relação às políticas habitacionais reflete diretamente nesse tipo de problemática. Ao não prover moradia para todos aqueles que se encontram em situações de vulnerabilidade socioeconômica, o Estado acaba favorecendo a ocupação de espaços precários. Alguns membros da comunidade esperam há cerca de 15 anos o acesso a uma moradia digna.

II. O clima. Situações não singulares.  

Em tempos de cortes nas políticas de assistência, Tibério Gouveia, coordenador do MTST estadual que atua nos setores de comunicação, organização e infraestrutura, avalia de maneira negativa a forma com que os governos têm tratado a questão habitacional. “Hoje no governo de Michel Temer e, sucessivamente, no governo de Paulo Câmara e na prefeitura de Geraldo Júlio não existe uma política pública de fato que dê garantia para que a população sem teto possa ter uma vida digna”, comentou, definindo tal postura como “ostensiva” ao movimento. Aliás, algo semelhante foi expresso pela também integrante do movimento, Joselita Cavalcanti (“Jô”), ao falar sobre as negociações envolvendo a Comunidade Pocotó e o poder municipal. Segundo ela, “na Semana Nacional de Luta pela Moradia e Trabalho, a gente foi pra prefeitura e foi um rolo danado, porque ela não queria receber o movimento”.

Para os representantes do MTST, o tratamento inicial dado pela Prefeitura foi hostil: além de não ter oferecido alternativa razoável após o pedido de despejo, as tentativas de diálogo feitas pela comunidade foram negadas. Apesar disso, os integrantes acreditam que, recentemente, o processo de negociações têm avançado. Um dos fatores que pode ter contribuido, segundo eles,  foi a cobertura dos jornais locais, que, ao contrário de outras vezes, não invalidaram a causa do movimento. “A mídia tem coberto assim de uma maneira bem razoável, porque, em geral, quando a gente recebe esse tipo de cobertura não fica muito contente”, lembra Tibério.

III. As ocupações. Hipóteses da gênese das ocupações. A Tormenta. Resistência da vida. Recife (não) é um paraíso. Manhãs recifenses.

Traço bastante característico da sociedade brasileira, o patrimonialismo - isto é, uma concepção de poder em que as esferas pública e privada estão fortemente imbricadas - favorece o alinhamento da máquina estatal com os setores empresariais conservadores, incluindo a mídia. Há, assim, uma tendência elitista de criminalização dos movimentos sociais que lutam pela questão habitacional, tais como o MST e o MTST, por considerar que eles, ao “invadirem” a propriedade privada, obstruem o direito de ir e vir dos cidadãos. Ao mesmo tempo, esta noção parece contraditória, pois, considerando que a moradia seja um direito básico, e que, portanto, a obrigação do Estado seria garanti-la para todos, uma realidade marcada pelo déficit habitacional vai de encontro não somente à liberdade, mas principalmente à dignidade de muitas famílias.

A situação recifense, longe de destoar dessa tendência histórica, também não é das melhores. Segundo a advogada do MTST, Cecília Gomes, que está envolvida diretamente nas negociações da comunidade, a Prefeitura “não tem nenhuma política habitacional para o município”, apenas “alguns projetos que nunca colocou em andamento”. A consequência imediata desse descaso é o crescimento da população sem teto, que desprovida de recursos, encontra nos terrenos irregulares e abandonados um lugar para viver. Para Tibério, a população da Comunidade Pocotó, assim como outras em situação semelhante, não “escolheu” estar ali, já que, na verdade, não lhe foi dada outra opção. “O sistema que cria essa moradia irregular, ele é um fruto da falta de política pública dos governos”, comenta. O líder acrescentou, ainda, que, ao perguntar para estes moradores onde eles desejariam viver, ouviu a seguinte resposta: “se a gente quisesse morar em algum lugar, a gente tava morando ali naquele prédio, lá no alto, mas a gente não escolheu morar, a gente mora porque a gente tem que ter um teto e tem que sobreviver”.

IV. Como se faz um deserto. Como se extingue o deserto.

“É uma área nobre, a especulação imobiliária ali rola solta”, comenta Jô, uma das líderes do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, sobre a região onde está localizada a Comunidade Pocotó. Como parte do movimento, ela também acompanhou a defesa de outros casos que, não por acaso, também estão localizados na Zona Sul da cidade. “Tanto é que tem um caso, e aconteceu há muito tempo atrás, que é o da Vila Oliveira, que é uma área ali do Pina que foi despejada, que teve uma reintegração de posse ali. [...] Tem também a questão da Comunidade dos Pescadores”, adiciona.

Para a professora de arquitetura da Universidade Federal de Pernambuco Danielle Rocha, a pressão imobiliária nessas áreas é um ponto essencial para entender esta recente quantidade de despejos. Acontece que muitas áreas desse tipo antes não tinham um valor edificante - eram, por exemplo, áreas de morro e alagadas - quando famílias começaram a ocupar. “As famílias vão ocupando, vão aterrando, vão produzindo e a cidade vai crescendo. Aquela área que antes não tinha valor, passa a ter“, explica a docente. É o caso da Comunidade Pocotó, que apesar do interesse não estar ligado ao território em si - a laje do túnel não é edificante - seus entornos têm importância no bairro.

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